INTRODUÇÃO

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A Academia de Dijon, no ano de 1753, propôs para a premiação do ano seguinte a questão: Qual é a origem da desigualdade entre os homens, e é ela autorizada pela lei natural? Para responder essa questão Jean-Jacques Rousseau, que ganhara a premiação do concurso anterior, publica, em 12 de junho de 1754, o “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”. Esta obra é um marco fundamental, pois apresentou uma concepção de homem que rompeu com os modelos filosóficos predominantes na época.

Rousseau, ao criar hipoteticamente o Estado de Natureza do homem, conclui que a desigualdade presente nas relações humanas não é legitimada pelas leis naturais. No seu discurso sobre a desigualdade entre os homens duas idéias gerais são destacadas. A primeira, desenvolvida por Rousseau, é de que existe uma bondade original na natureza humana. Bondade que é corrompida, pouco a pouco no processo de evolução social dos homens. A segunda idéia é de que há uma igualdade original inscrita no homem natural. Todos os homens nascem iguais ante a natureza. No entanto, as diferenças físicas presentes em cada ser humano progressivamente destitui a igualdade natural, produzindo assim as desigualdades sociais.

As desigualdades físicas ou naturais se expressam nas diferenças de idade, de forma corporal, de condições de saúde e das qualidades do espírito e da alma. A outra forma de desigualdade, que não possui uma base natural, é denominada por Rousseau de moral ou política. Esta é estabelecida por convenções humanas e consiste no privilégio de alguns em prejuízo de outros. Para Rousseau, esta última forma de desigualdade é um produto humano, ela é eminentemente artificial.

1.1 A bondade original da natureza humana
Rousseau rejeita a formulação defendida por Thomas Hobbes, de que na condição natural, sem a presença do Estado, os homens vivessem em permanente estado de “guerra de todos contra todos”. No seu entendimento, Hobbes não conseguiu identificar o verdadeiro Estado de Natureza do homem e argumentava: “o erro de Hobbes deve-se a ter levado em consideração necessidades tardias para julgar o estado original do homem. O homem primitivo não poderia ser mau, uma vez que não sabia o que era bom e mau” (ROUSSEAU, 1974, p. 260).

Com o objetivo de identificar o verdadeiro Estado de Natureza, feito não alcançado por Hobbes, Rousseau retroagiu há tempos remotos e hipoteticamente elaborou a tese de que o desenvolvimento humano deu-se em diferentes estágios. A vida do homem, na sua origem, é puramente animal e se limitava às sensações imediatas. Os acontecimentos principais são a alimentação e a sexualidade. As relações humanas ocorriam sempre de forma descontínua. Existia no homem um amoralismo integral. Ele não era nem bom, nem mau. Ignorava, desta forma, as virtudes e os vícios. Sobre essa fase inicial da vida do homem, Rousseau dizia: “não iremos, sobretudo, concluir como Hobbes, que por não ter nenhuma idéia de bondade, seja o homem naturalmente mau; que seja corrupto porque não conhece a virtude” (ROUSSEAU, 1974, p. 258). E continuava sua argumentação:

A consciência é, pois, nula no homem que nada comparou e que não viu suas relações. Nesse sentido, o homem só conhece a si mesmo; ele não vê seu bem-estar oposto conforme ao de ninguém; não odeia nem ama nada; limitado exclusivamente ao instinto físico, é nulo, e animal; foi o que fiz ver em meu Discurso sobre a desigualdade (ROUSSEAU apud FORTES, 1989, p. 12-13).

Nesse primeiro estado o homem e a natureza eram elementos indivisíveis. Apesar da inexistência de uma consciência moral, com noções de bem e de mau, dois princípios prevalecem entre os homens e entre estes e a natureza: o da conservação de si mesmo e o da piedade natural. Rousseau denominava esses princípios de moral natural. A conservação de si mesmo é a única paixão que nasce com o homem. Na carta enviada ao arcebispo de Paris, Christophe de Beaumont, datada de 20 de agosto de 1762, Rousseau aprofundava sua argumentação sobre a tese da bondade original da natureza humana e sobre o princípio da conservação de si mesmo:

O princípio fundamental de toda moral sobre a qual raciocinei em todos os meus escritos (...) é de que o homem é um ser naturalmente bom, amando a justiça e a ordem; que não há perversidade original no coração humano e que os primeiros movimentos da natureza são sempre retos. Fiz ver que a única paixão que nasce com o homem, a saber, o amor de si, é uma paixão em si mesmo indiferente ao bem e ao mal, que não se torna boa ou má a não ser por acidente e segundo as circunstâncias nas quais se desenvolve. (ROUSSEAU apud FORTES 1989, p. 12).

Paul Abrousse-Batisde e Lorival Gomes Machado, na introdução do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1974), apresentam o que eles denominam de princípio da moral natural. O amor em si próprio e a piedade natural constituem para esses leitores de Rousseau a moral natural.

1.2 Primeiro princípio da moral natural: a conservação de si mesmo
Para Rousseau, a conservação de si mesmo necessariamente não implicava na destruição do outro. Ele considerava que Hobbes errou no seguinte ponto: para garantir a auto-conservação, o homem tinha que lutar com os demais, matando-os ou escravizando-os. Ainda segundo Rousseau, o amoralismo integral, que é uma característica do primeiro Estado de Natureza, não implicava em maldade. A sua ponderação era de que a inexistência da bondade não resultava na presença da maldade. Sobre isso ele dizia:

Hobbes não viu que a mesma causa que impede os selvagens de usar a razão, como o pretendem nossos jurisconsultos, os impedem também de abusar de suas faculdades, como ele próprio acha; de modo que se poderia dizer que os selvagens não são maus precisamente porque não sabem o que é ser bons, pois não é nem o desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei, mas a tranqüilidade das paixões e a ignorância do vício que os impedem de proceder mal (...) (ROUSSEAU, 1974, p. 258).

A noção de direito sobre os bens do mundo, da natureza externa, não levava o homem natural necessariamente a almejar um domínio universal. Pode-se muito bem zelar pela própria conservação sem prejudicar a de outrem. De acordo com Rousseau, Hobbes não conseguiu perceber que o homem, como os demais animais da natureza, tende a suavizar a ferocidade de seu amor-próprio ou de seu desejo de conservação por sentir uma repugnância inata com o sofrimento de seus semelhantes. Neste momento, um segundo princípio da moral natural é descrito por Rousseau: a piedade natural.


1.3 Segundo princípio da moral natural: a piedade
O homem é naturalmente indulgente. A piedade é um movimento da natureza, anterior a qualquer reflexão. A piedade, na visão de Rousseau, não era uma virtude eminentemente social. Ele acreditava que a piedade era mais forte no Estado de Natureza, “pois a piedade representa um sentimento natural que, moderando em cada indivíduo a ação do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie” (ROUSSEAU, 1974, p. 260). Para fundamentar sua argumentação da existência de uma piedade natural, Rousseau citava como exemplo ilustrativo alguns comportamentos animais:

Falo da piedade, disposição conveniente a seres tão fracos e sujeitos a tantos males como o somos; virtude tanto mais universal e tanto mais útil ao homem quando nele precede o uso de qualquer reflexão, e tão natural que as próprias bestas às vezes são delas alguns sinais perceptíveis. Sem falar da ternura das mães pelos filhotes e dos perigos que enfrentam para garanti-los, comumente se observa a repugnância que têm os cavalos de pisar num ser vivo. Um animal não passa sem inquietação ao lado de um animal morto de sua espécie; há até alguns que lhes dão uma espécie de sepultura, e os mugidos tristes do gado entrando no matadouro exprimem a impressão que tem do horrível espetáculo que o impressiona (ROUSSEAU, 1974, p. 259).

A piedade natural, sem auxílio da reflexão, levava os seres vivos a socorrerem aqueles que sofrem. No Estado de Natureza ela ocupa o lugar das leis, dos costumes e das virtudes. Para Rousseau, a máxima da justiça racionalizada: “Faze o outrem o que desejas que façam a ti” (ROUSSEAU, 1974, p. 260) – contém um relativo grau de perfeição. No entanto, outra máxima que se inspirava na bondade natural, era mais útil e mais perfeita: “Alcança o teu bem com o menor mal possível para outrem” (ROUSSEAU, 1974, p. 260). Rousseau acreditava que a piedade natural era muito vantajosa, pois ela conseguia equilibrar e compensar o primeiro princípio da moral natural: a conservação de si mesmo.

Rousseau avaliava que o médico holandês Mandeville acertou ao demonstrar, em sua Fábula das Abelhas, que os homens não passariam de monstros se a natureza não lhes tivesse conferido a piedade para apoiar a razão. Errou, porém, ao não entender que todas as virtudes sociais possuem suas raízes na piedade natural.

1.4 A igualdade original inscrita no homem natural
No entendimento de Rousseau, a desigualdade é quase nula no Estado de Natureza. As desigualdades presentes nesse estado eram apenas de ordem física. Portanto, as desigualdades entre os homens não se originavam das leis naturais e sim dos hábitos, da educação e, consequentemente, da sociedade. Ao descrever o percurso do desenvolvimento humano, Rousseau delimitava uma nítida distinção entre as desigualdades naturais e as sociais:

Como não tinham entre si nenhuma espécie de comércio, como conseqüentemente não conheciam nem vaidade, nem a consideração, a estima ou o desprezo; como não possuíam a menor noção do teu e do meu, nem qualquer idéia verdadeira de justiça; como consideravam as violências, que podiam tolerar, como um mal fácil de ser reparado e não como uma injúria que deve ser punida; e como não pensavam na vingança senão maquinalmente e no momento, à maneira do cão que morde a pedra que lhe atiram – suas disputas raramente teriam conseqüências sangrentas, se não conhecessem assunto mais excitante que o alimento (ROUSSEAU, 1974, p. 260).

O marco definitivo que alterou a igualdade natural entre os homens foi o desenvolvimento da noção de propriedade. A partir dela, a terra e os seus frutos passam a ter donos. Os pronomes possessivos “seu” e “meu” começaram a ser conjugados. A propriedade privada altera a alma e as paixões humanas, transformando definitivamente a igualdade inscrita na natureza humana. O homem natural desapareceu gradativamente, cedendo lugar a agrupamentos de homens artificiais e de paixões fictícias sem fundamentos na natureza. Na segunda parte do Discurso, Rousseau descreve a passagem do Estado de Natureza para o da Sociedade Civil:

O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores não poupariam ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!’ (Rousseau, 1974, p. 265).

No entanto, a idéia de propriedade não se formou repentinamente no espírito humano. Para que ela fosse construída e aceita entre os homens, outras tiveram que se sedimentar. O sentimento mais primitivo do homem foi o de sua existência. A auto-conservação foi sua primeira preocupação. Com o desenvolvimento da indústria e das luzes, bem como a sua transmissão por gerações e gerações, alteraram este sentimento e preocupação.

Com a agricultura os homens se fixam na terra, permitindo assim uma maior continuidade em suas relações: “as ligações se estendem e os laços se apertam. Os homens habituaram-se a reunir-se” (ROUSSEAU, 1974, p. 269). A aproximação e a constância nas relações humanas permitiram a observação mútua e, consequentemente, as comparações. Os homens olham os seus semelhantes e desejam ser olhados por eles. O primeiro passo dado rumo à desigualdade e ao vício ocorreu com o desenvolvimento das preferências, quando determinados atributos individuais passaram a ser valorizados.

Ao atribuir maior valor a aquele que dançava ou cantava melhor, ao mais belo ou mais forte, os homens iniciaram um caminho sem volta, nascendo assim, de um lado, a vaidade e o desprezo, e de outro, a vergonha e a inveja. Na carta enviada ao arcebispo Christophe de Beaumont, Rousseau afirma: “eis, monsenhor, o terceiro e último termo, para além do qual nada resta a fazer, e eis como o homem, sendo bom, os indivíduos tornam-se malvados” (ROUSSEAU apud FORTES, 1989, p. 14). E continuava:

(...) enquanto só se dedicaram a obras que um único homem podia criar, e a artes que não solicitavam concursos de várias mãos, viveram tão livres, sábios, bons e felizes quanto o poderiam ser por sua natureza, e continuaram a gozar entre si das doçuras de um comércio independente; mas, desde o instante em que um homem sentiu necessidade do socorro de outro, desde que percebeu ser útil a um só contar com a provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas transformaram-se em campos aprazíveis que se impôs regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinarem e crescerem com as colheitas (ROUSSEAU, 1974, p. 271).

O homem selvagem, antes do estabelecimento da Sociedade Civil, vivia o repouso e a liberdade. Para se sentir feliz o seu testemunho era mais que suficiente. As palavras ‘poderio’ e ‘reputação’ não lhe faziam o menor sentido. Com o desenvolvimento da Sociedade Civil, baseada na estima pública e na propriedade, os homens passaram a viver para as aparências. Sua felicidade agora depende do testemunho de outrem. Assim:

(...) as palavras poder e reputação tivessem um sentido para seu espírito e que soubesse existir uma espécie de homens que dão valor aos olhos do resto do mundo e se sentem satisfeitos consigo mesmos mais pelo testemunho de outrem do que pelo seu próprio. Tal, com efeito, a verdadeira causa de todas essas diferenças: o selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de si, só sabe viver baseando-se na opinião dos demais e chega ao sentimento de sua própria existência quase que somente pelo julgamento destes (ROUSSEAU, 1974, p. 287).

O homem nasce livre. A liberdade e a vida são bens essenciais da natureza. Para Rousseau, eram esses os maiores valores que o homem possuía. Mas, com o advento da Sociedade Civil e da propriedade, a liberdade usufruída pelo homem desapareceu. “O homem nasceu livre e em todo lugar encontra-se a ferros”. Estas são as palavras que marcam o início do Contrato Social. Os ferros que aprisionam os homens só se perpetuavam na Sociedade Civil porque a manutenção da propriedade exigia que isso ocorresse. A invenção da propriedade separava os ricos dos pobres. Para que os ricos mantivessem seus bens, a escravidão e as leis foram criadas. Surgem assim as primeiras sociedades civis baseadas em leis. Sobre elas, Rousseau concluía:

Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico (...), destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos, daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e a miséria (ROUSSEAU, 1974, p. 275-276).

O direito à propriedade é apenas uma convenção das instituições humanas. O homem por seu próprio arbítrio podia dispor daquilo que possuía. No entanto, isso não pode ser feito com os bens essenciais da natureza, tais como a vida e a liberdade. A liberdade é um dom que advém da natureza. Na compreensão de Rousseau, o homem não tinha qualquer direito de usurpar a liberdade de outro semelhante. Se desta forma proceder, o homem viola a própria natureza ao instituir e legitimar a escravidão por intermédio de suas leis. Na sua visão, a natureza teve que ser modificada “para perpetuar esse direito e os jurisconsultos que pronunciaram gravemente nascer escravo o filho de um escravo resolveram, em outras palavras, que um homem não nasceria homem” (ROUSSEAU, 1974, p. 280 e 281).

As teorias que buscavam justificar as desigualdades e a escravidão, numa suposta tendência natural do homem à servidão, não passavam, para Rousseau, de sofismas de certos políticos e filósofos. Ele também refutava a idéia de que o poder absoluto dos governos déspotas, bem como de toda a sociedade, fosse uma herança de uma autoridade paterna natural. Ao se opor a tal idéia, Rousseau buscava apoio nas teorias de Locke e Sidney e argumentava que:

(...) basta observar que nada no mundo mais se distancia do espírito feroz do despotismo do que a doçura dessa autoridade, que leva em consideração antes o benefício daquele que obedece do que a utilidade daquele que comanda. Além disso, o pai, pela lei da natureza, só é senhor do filho enquanto necessário seu auxílio, tornando-se depois disso iguais e, então, o filho, inteiramente independente do pai, só lhe deve respeito, sem nenhuma obediência, pois o reconhecimento representa um dever que se deve cumprir, mas não um direito que se possa exigir. Em lugar de dizer que a sociedade civil deriva do poder paterno, dever-se-ia, pelo contrário, dizer que dela tira esse poder a sua principal força (ROUSSEAU, 1974, p. 279).

A natureza não gera seres servis. Rousseau, ao comparar o corcel indomável – que impetuosamente reage e luta por sua liberdade com aproximação do freio – com cavalo domado – que suporta pacientemente o chicote e a espora – demonstra que a servidão não se sustentava em uma tendência natural. Para ele, o espírito de servidão nascia com a sociedade; era ela que domesticava os seres, sejam homens ou animais. E continua a sua argumentação dizendo:

(...) também o homem bárbaro não dobra sua cabeça ao jugo que o homem civilizado carrega sem murmurar e prefere a mais tempestuosa liberdade a uma tranqüila dominação. Não é pois, pelo aviltamento dos povos dominados que se devem julgar das disposições naturais do homem a favor ou contra a servidão, mas sim pelo prodígio realizado por todos os povos livres para se defenderem da opressão. Sei que os primeiros nada fazem senão enaltecer continuamente a paz e o sossego de que gozam sob seus grilhões (...), mas quando vejo os outros sacrificarem os prazeres e o repouso, a riqueza, o poder e a própria vida pela conservação desse único bem tão desprezado por aqueles que o perderam, quando vejo animais, nascidos livres e detestando o cativeiro, esmagarem a cabeça contra as grades da prisão, quando vejo multidões de selvagens nus desprezarem as volúpias européias e enfrentarem a fome, o fogo, o ferro e a morte para conservar somente sua independência, concluo não poderem ser os escravos os mais indicados para raciocinar sobre a liberdade (ROUSSEAU 1974, p. 279).

Para Rousseau, os cidadãos só aceitavam a opressão porque acreditavam que um dia se beneficiariam com os privilégios da dominação. Essa ambição permitia que olhassem mais abaixo do que acima de si mesmos. A dominação passava a ser tolerada, pois os cidadãos alimentavam a crença de que um dia poderia aplicá-la nos seus supostos inferiores. Como a obediência serve mais àquele que busca um dia comandar, nenhum político por mais sagaz que seja, escravizaria homens que só desejassem ser livres. Mas ao contrário, “a desigualdade se expande, sem dificuldades, entre almas ambiciosas e covardes, sempre prontas a correr o risco da fortuna e a quase indiferentemente dominar ou servir, conforme lhes seja a fortuna favorável ou contrária” (ROUSSEAU, 1974, p. 283).

Um projeto de homem é logo identificado ao construir uma síntese das principais teses desenvolvidas por Rousseau em seu Discurso. Ao criar hipoteticamente o Estado de Natureza do homem, Rousseau evidencia o que a Sociedade Civil havia corrompido no homem. O pensamento de Rousseau, simbolicamente, faz o que um bom restaurador faria com a estátua danificada de Glauco. Ou seja, retirava os musgos e crostas que o encobriam e restaurava sua verdadeira integridade.

Rousseau não se resigna com a aparência imediata do homem civil. A Sociedade Civil fez com o homem o que o tempo e as forças corrosivas do mar profundo fizeram com Glauco. Assim, o homem também não poderia ser definido apenas pelo que restou de sua real integridade. O homem civil é mero espectro. As máscaras precisavam ser retiradas, para que o homem natural se revelasse com maior nitidez. Para Rousseau, o destino do homem está onde a liberdade e felicidade se fecundam.