DISCUSSÃO

S

Um projeto educacional representa sempre uma determinada visão de mundo e de homem. Hobbes entendia o homem como um ser destrutivo por natureza. Na sua visão, cada homem era um inimigo nato dos demais, pois este só encontrava o seu bem fazendo o mal aos demais. Portanto, para que a vida em sociedade fosse uma realidade viável, era necessário que poderosos mecanismos de coerção fossem criados para inibir os efeitos dessa natureza humana. Deriva desta visão a idéia de Estado, pois só com uma estrutura organizativa forte, externo à vontade individual do homem, poderia existir uma sociedade civilizada.

Nesse sentido, para garantir a sociabilidade humana era necessário existir os mecanismos de coerção e controle social, tais como os ideológicos, as leis religiosas e civis, os repressivos, as prisões, as privações e demais formas de punições violentas. O pensamente de Thomas Hobbes é apenas um exemplo de como uma visão de mundo e de homem conduz a uma determinada concepção de educação. Para essas visões, que entendem o homem com um ser naturalmente destrutivo, por tanto incapaz de autogoverno, só caberia à educação, institucionalizada ou não, a tarefa de conter ou minimizar a força dos vícios naturais do homem.

Rousseau, ao contrário de Hobbes, apostava na bondade original do homem. A liberdade, a igualdade e o respeito às forças imponderáveis da natureza eram, para ele, os maiores valores do homem. No entanto, esses valores foram aos poucos corrompidos pela Sociedade Civil. A natureza humana não podia, então, ser julgada a partir do que se estabeleceu entre os homens nessa sociedade. Os germes que romperam com o real Estado de Natureza do homem foram, inicialmente, a estima e a consideração pública e, imediatamente após, as primeiras desigualdades e deveres civilizados.

A invenção da propriedade privada e a formação das leis civis viabilizaram o progresso da desigualdade. As leis foram criadas com o objetivo de assegurar a manutenção da propriedade. Ou seja, que ela se perpetuasse nas mãos de seus usurpadores. A partir do estabelecimento da propriedade e das leis que as mantêm, contendas e vinganças surgiram nas relações humanas. A piedade natural e o amor de si ficam subsumidos na moralidade civil. O policiamento dos costumes e a conseqüente punição dos contraventores foram importantes mecanismos mantenedores da ordem estabelecida entre os homens da Sociedade Civil. Rousseau acreditava que os mecanismos de controle e de dominação criados pela sociedade têm a mera função de manter as desigualdades entre os homens.

Como Rousseau era crítico da ordem social que mantinha as desigualdades e acreditava que a natureza do homem não é em si destrutiva, a sua proposta educacional tinha finalidades e métodos diametralmente opostos às propostas educacionais de Hobbes. Na obra Emílio ou Da Educação, Rousseau concebeu uma educação negativa, pois tinha como objetivo principal preservar ao máximo o aluno das convenções e leis da Sociedade Civil. Alegoricamente, a educação negativa de Rousseau podia ser comparada com o trabalho artesanal de um restaurador, pois o seu objetivo era preservar a integridade original de uma determinada peça de arte. Nada se acrescenta à obra, pois tudo já foi concluído pela natureza. Os artifícios criados pela Sociedade Civil só ofuscam e decompõem a estética e a integridade natural do homem.

A educação de Emílio tem como princípio fundamental o rompimento com o padrão relacional da Sociedade Civil, em que uns dominam e outros são subjugados. O aluno de Rousseau não aprenderia a dominar nem tão pouco obedecer. Por tal princípio, todos os métodos coercitivos de educar são rejeitados. Os mecanismos de controle externo eram antagônicos aos objetivos de Rousseau, pois o que se pretendia era que, desde pequena, a criança caminhasse no sentido de conquistar o seu autocontrole. A criança não seria submetida às vontades absolutas do adulto, ainda que esses fossem seus pais ou preceptores, nem tão pouco submeteria os adultos às suas vontades e fantasias.

No entendimento de Rousseau, só dois valores são inalienáveis ao homem: a vida e a liberdade. Pois, esses são dons que advém da natureza. O homem não tem qualquer direito de usurpar a liberdade de outro semelhante. Instituir e legitimar a escravidão por intermédio das leis do homem era, para Rousseau, violar a própria natureza. Assim, o valor máximo a ser cultivado na educação de Emílio era a liberdade. A auto-suficiência e autonomia eram capacidades que Emílio deveria adquirir. Sua educação deveria, então, fortalecê-lo física e espiritualmente para enfrentar os jugos dos homens que queriam oprimir, bem como para encarar os desafios impostos pela natureza. Nesse sentido, educar era, para Rousseau, reinventar a liberdade.

Grosrichard (1980) expressa uma convergência com a leitura da proposta educacional de Rousseau ao relembrar que para ele o único instrumento capaz de proporcionar uma verdadeira educação era a liberdade bem regrada. Em Emílio, Rousseau diz: “todos os instrumentos foram experimentados, menos um. O único, precisamente, que pode ter êxito: a liberdade bem regrada” (ROUSSEAU apud GROSRICHARD, 1980, p. 29). Ser bem regrada, na interpretação deste autor, é evitar qualquer forma de coação externa. A liberdade só pode ser regrada por si mesma. A liberdade não poderia germinar no solo da opressão e da coação.

Em nenhum momento Emílio foi submetido a qualquer forma de violência, seja física ou moral. A dor física, a humilhação, o ataque à auto-estima, a ameaça ou a privação de afeto ou de outras necessidades básicas não deveriam ser utilizados como mecanismos de controle do comportamento de Emílio. O que ele precisava era conhecer ao máximo as suas potencialidades, capacidades físicas e espirituais, para que pudesse em um dado momento governá-las. A única ordem a ser obedecida deveria ser a de sua natureza. Portanto, o jovem Emílio não precisava ser normalizado pelas convenções da Sociedade Civil. Nesse sentido, Grosrichard argumenta:

A natureza não viola suas próprias leis, não transgride seus próprios limites. Emílio, enquanto ser natural na natureza, e essencialmente normal, não tem que ser normalizado. Está na ordem e não tem que recebê-la. É governado pelo necessário, não pelo obrigatório; pelo possível, não pelo permitido; pelo impossível, não pelo proibido (GROSRICHARD, 1980, p. 29).

Rousseau rejeita as convenções que determinam o que é certo ou errado na Sociedade Civil. Na sua visão, toda a sabedoria dessa sociedade consiste em preconceitos servis e que todos os “costumes não passam de sujeição, embaraço e constrangimento. O homem civil nasce, vive e morre na escravidão; enquanto conservar a figura humana estará acorrentado por nossas instituições” (Rousseau 2004, p. 16). A educação proposta por ele deveria assim ser uma negação das convenções estabelecidas pela Sociedade Civil.

O seu aluno deveria aprender não o que é certo ou errado, mas sim o que é necessário e possível. Teria que conhecer e desenvolver suas faculdades internas e compreender os limites que a natureza impõe a elas. Para que isso realmente acontecesse era fundamental, na visão de Rousseau, que a criança passasse por uma intensa fase de experimentação. As coisas do mundo, as pessoas e suas reações, bem como as próprias faculdades internas teriam que ser objeto de experimentação da criança.

Desde o nascimento a criança está em um permanente processo de aprendizagem. Antes mesmo da aquisição da linguagem. As coisas, as pessoas e suas reações são fontes contínuas de ensinamentos. Rousseau ilustra essas aprendizagens precoces ao discutir as reações dos adultos sobre o choro dos bebês. Os adultos ora agiam com violência, coagindo as crianças; ora as balançavam e mimavam para ficassem quietas e em silêncio. Diante disso, ele fez algumas interrogações. Por que o choro, que é a primeira linguagem da criança, despertava comportamentos tão antagônicos? Por que a criança tem que ser silenciada? E por que não ensiná-la a suportar as adversidades? Ele mesmo respondeu essas questões, dizendo:

É pelo efeito sensível dos sinais que as crianças avaliam seu sentido, não há outra convenção para elas; quando uma criança se machuca é muito raro chorar se estiver sozinha, a menos que tenha a esperança de ser ouvida. Se cair, se ficar com um galo na cabeça, se sangrar pelo nariz, se cortar os dedos, em vez de agitar ao seu redor com um jeito alarmado, ficarei tranqüilo, pelo menos por um tempo. O mal está feito, é uma necessidade que ela o suporte; toda a minha diligência só serviria para assustá-la ainda mais e aumentar sua sensibilidade (...). É nessa que se tomam as primeiras lições de coragem e, suportando sem pavor as dores leves, aprende-se aos poucos a suportar as grandes.(...) Longe de estar atento a evitar que Emílio se machuque, eu ficarei muito aborrecido se ele nunca se ferisse e crescesse sem conhecer a dor. Sofrer é a primeira coisa que ele deverá aprender, e a que ele terá necessidade de saber (ROUSSEAU, 2004, p.70).

Essa passagem evidencia a importância da criança suportar a dor e que o sofrimento é uma aprendizagem necessária. Ao defender que a criança deveria passar por sofrimentos, Rousseau estaria contradizendo suas próprias palavras? Pois na frase seguinte ele diz exatamente o contrário: “por que quereis encher de amargura e de dores esses primeiros anos tão velozes, que não mais voltarão para eles, assim como não voltarão para vós? (...) Assim que eles puderem sentir o prazer de existir, fazei com que o gozem; fazei com que, a qualquer hora que Deus chamar, não morram sem ter saboreado vida” (ROUSSEAU, 2004, p. 72 e 73). Para que não se firme uma falsa contradição, é importante esclarecer sobre os sentimentos de dor e sofrimento dos quais Rousseau estava se referindo na passagem anterior. Uma outra citação do livro Emílio pode ajudar neste esclarecimento:

Se eu tivesse dúvida de que o sentimento do justo e do injusto é inato no coração do homem, só esse exemplo já me teria convencido. Tenho certeza de que, se um tição ardente tivesse caído por acaso na mão daquela criança, teria sido para ela menos doloroso do que aquele golpe leve, mas desferido com a intenção manifesta de atingi-la (ROUSSEAU, 2004, p. 54).

As dores que deveriam ser enfrentadas pelas crianças, na visão de Rousseau, eram as que tinham origem nas forças imponderáveis da natureza. O homem, como a criança, precisava compreender que a natureza era soberana e que era preciso respeitar os limites que essa soberania impunha. Os ferimentos, as doenças naturais, as perdas físicas ou espirituais, a morte precisavam ser enfrentadas pelo homem. Por isso, o exemplo do tição ardente, que por acaso cai na mão da criança, é tão pertinente. A criança sente mais a dor quando ela percebe intenção de alguém em machucá-la. Rousseau, em seus escritos, jamais defendeu a utilização da dor e do sofrimento como um recurso pedagógico.

Nenhum adulto deveria infligir intencionalmente dores e sofrimentos a uma criança com a finalidade de subjugá-la. Mas a criança deveria enfrentar e suportar a dor que se originava de suas próprias ações. A liberdade tem um preço a ser pago. Ou seja, para exercê-la é preciso correr risco e assumir conseqüências. Para Rousseau, o bem-estar da liberdade compensava qualquer ferimento. O seu “aluno muitas vezes terá contusões; em compensação, estará alegre. Se vossos filhos se machucam menos, estão sempre contrariados, sempre presos, sempre tristes. Duvido que a vantagem esteja de seu lado” (ROUSSEAU, 2004, p. 71).

A principal metodologia utilizada na educação de Emílio era a experimentação e, por conseguinte, as conseqüências que dela resultar. Os obstáculos físicos ou as punições deveriam sempre nascer das próprias ações do indivíduo. Na educação proposta por Rousseau pouca importância tinha a noção de certo e de errado. Se não existiam erros a serem corrigidos, a punição não tinha lugar. Se o objetivo era não controlar ou inibir, mas sim conhecer e desenvolver, os mecanismos coercivos, como as violências físicas, não possuíam nenhuma função objetiva.

A conduta da criança deveria ser dirigida por suas próprias forças. Ou seja, o controle deveria ser interno. A liberdade só prevalece realmente se as ações da criança forem conduzidas por um entendimento consciente e não pelo medo das conseqüências externas. A criança, como o homem, não deveria ser controlada pela opinião pública. Para que os indivíduos não sucumbam à estima pública, conseguindo se auto governar, eles precisam se fortalecer física e espiritualmente.

Eis aqui a principal tarefa do preceptor: fortalecer a criança para que um dia ela tenha condições de agir de acordo com suas necessidades reais e assumir as conseqüências de sua liberdade. Ao fim e ao cabo, o que realmente a educação de Rousseau pretendia era resgatar a inteireza do homem – que ele fosse “tudo para si mesmo, fosse uma unidade numérica que só se relaciona consigo mesmo ou com seu semelhante” (ROUSSEAU, 2004, p. 11). E para reafirmar essa pretensão, encerra-se esta monografia com a força viva e atual das palavras de Rousseau:

Sempre em contradição consigo mesmo, sempre passando das inclinações para os deveres, jamais será nem homem para si mesmo, nem para os outros. Será um desses homens de hoje, um francês, um inglês, um burguês; não será nada. (...)Para ser alguma coisa, para ser si mesmo e sempre uno, é preciso agir como se fala; é preciso estar sempre decidido a respeito do partido a tomar, tomá-lo abertamente e continuar sempre com ele (ROUSSEAU, 2004, p. 12).