DESENVOLVIMENTO

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2.1 Concepção de Educação

Todos os progressos e prodígios humanos, que necessariamente não foram sempre positivos, advêm de um atributo denominado por Rousseau de perfectibilidade. Esse consistia na capacidade do homem de aperfeiçoar-se. Aqui reside a diferença entre o homem e o animal: o primeiro poderá modificar-se ao longo de toda a sua vida; o segundo, pelo “contrário, ao fim de alguns meses, é o que será por toda a vida, e sua espécie, no fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano desses milhares” (ROUSSEAU, 1974, p. 249).

Na visão de Rousseau, os animais, como os homens, possuíam ideais que em determinadas circunstâncias podiam ser combinadas. Porém, no homem ao contrário dos animais, as idéias possuíam uma intencionalidade. Sobre esta intencionalidade, ele dizia:

A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobre tudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma, pois a física de certo modo explica o mecanismo dos sentidos e a formação das idéias, mas no poder de querer, ou antes, de escolher e no sentido desse poder só se encontram atos puramente espirituais que de modo algum serão explicados pelas leis mecânicas (ROUSSEAU, 1974, p. 249).

A liberdade, que permitia ao homem desenvolver a capacidade de aperfeiçoar-se, era entendida, nesse texto, como a pedra fundamental da proposta de educação desenvolvida por Rousseau. Para ele, o primeiro de todos os bens não era autoridade, mas sim a liberdade. A finalidade última da educação de Rousseau é possibilitar que o homem fosse verdadeiramente livre, fosse um ser forte e autônomo. A força do homem livre estava no governar de suas paixões. Cabia, então, ao processo educativo permitir ao homem compatibilizar as suas necessidades, desejos e paixões às suas forças. O homem que “só quer o que pode e faz o que agrada. Eis a minha máxima fundamental. Trata-se apenas de aplicá-la à infância, e todas as regras da educação decorrerão dela” (ROUSSEAU, 2004, p. 80-81).

Nesse sentido, o preceptor não deve dar preceitos ao aluno, mas sim fazer com que ele os encontre. Rousseau rejeitava todos os preceitos oferecidos pela educação da Sociedade Civil, pois avaliava que toda a sabedoria dessa sociedade consistia em preconceitos servis e que todos os “costumes não passam de sujeição, embaraço e constrangimento. O homem civil nasce, vive e morre na escravidão; enquanto conservar a figura humana, estará acorrentado por nossas instituições (Rousseau 2004, p. 16)”. A sua proposta de educação é uma negação das convenções estabelecidas pela Sociedade Civil:

Portanto, a primeira educação deve ser puramente negativa. Consiste não em ensinar a virtude ou a verdade, mas proteger o coração contra o vício e o espírito contra o erro. Se pudesses nada fazer e nada deixar que fizessem, se pudesses levar nosso aluno são e robusto até a idade de doze anos em que ele soubesse distinguir a mão esquerda da direita, desde vossas primeiras lições os olhos de seu entendimento se abririam para a razão; sem preconceitos, sem hábitos, ele nada teria em si que pudesse obstar o efeito de vossos trabalhos. Logo se tornariam em vossas mãos o mais sábio dos homens e, começando por nada fazer, tereis feito um prodígio de educação (ROUSSEAU, 2004. p. 97).

Rousseau não almejava moldar a cabeça das crianças, dando lhes uma forma mais conveniente para atender as expectativas da Sociedade Civil. Ao contrário, ele fez uma severa crítica aos que pretendiam realizar, a qualquer custo, essas expectativas. A sua crítica vinha na forma de uma interrogação: “nossas cabeças não estariam bem à maneira do autor de nosso ser; precisamos tê-las moldadas por fora pelas parteiras e por dentro pelos filósofos?” (ROUSSEAU, 2004, p. 17) O homem não deveria ser educado para atender à opinião pública, desta maneira:

(...) em vez de educar um homem para si mesmo, queremos educá-lo para os outros? Este acordo torna-se, então, impossível. Forçado a combater a natureza ou as instituições sociais, é preciso optar entre um homem ou um cidadão, pois não se podem fazer os dois ao mesmo tempo (ROUSSEAU, 2004, p. 11).

O homem, livre e autônomo, idealizado por Rousseau deveria, no entanto, servir ao imperativo da natureza. Ao estabelecer a soberania das necessidades naturais sobre as convenções sociais, Rousseau buscava restaurar a igualdade original da natureza humana. Desta forma, cada indivíduo, independente da sua posição social, era reconhecido como um sujeito de potencialidades. Nesse sentido, ele afirma:

Conhecemos, pois, ou podemos conhecer o primeiro ponto de onde cada um de nós parte para chegar ao grau comum de entendimento; mas quem conhece a outra extremidade? Cada qual avança mais ou menos segundo seu gênio, seu gosto, suas necessidades, seus talentos, seu zelo e as oportunidades que tem para se entregar a ele. Que eu saiba, nenhum filósofo até agora foi suficientemente ousado para dizer: eis o termo aonde o homem pode chegar e que não seria capaz de ultrapassar. Ignoramos o que nossa natureza nos permite ser; nenhum de nós mediu as distâncias que pode haver entre um homem e outro homem (ROUSSEAU, 2004, p. 48).

O reconhecimento das potencialidades humanas norteia a obra de Rousseau. A compreensão de que homem apresenta diferentes estágios de desenvolvimento ao longo de sua vida é outra importante característica. Em cada um dos estágios evolutivos do homem existe uma forma diferente de apreender o mundo. Os sentidos e percepções físicas, as paixões do espírito e a razão são adquiridas de acordo com uma ordem hierárquica. Ao descrever esta hierarquia, Rousseau expressa a influência que sofreu das teses de Hume. Ele postulava que:

Como tudo o que entra no entendimento humano vem pelos sentidos, a primeira razão do homem é uma razão sensitiva; é ela que serve de base para a razão intelectual: nossos primeiros mestres de filosofia são nossos pés, nossas mãos, nossos olhos. Substituir tudo isso por livros não equivale a nos ensinar a racionar, mas sim a nos ensinar a nos servirmos da razão de outrem; equivale a nos ensinar a acreditar muito e nunca nada saber (ROUSSEAU, 2004, p.148).

Na concepção de educação, idealizada por Rousseau, o preceptor deveria ter sempre a mesma postura de um bom governante. Não deveria ser tirânico, não daria ordens arbitrárias. Apesar de se contrapor aos métodos autoritários de educação, Rousseau, no entanto, não aderia à educação liberal defendida por Locke. A grande máxima dessa educação era de que as crianças deveriam ser educadas por intermédio de explicações racionais. Rousseau discordava, pois entendia ser um grave equívoco raciocinar com crianças pequenas. Utilizar a razão nesse caso “é começar pelo fim, é querer fazer da obra o instrumento. Se as crianças compreendessem razão, não teriam necessidade de ser educadas” (ROUSSEAU apud GROSRICHARD, 1980, p. 33).

De acordo com Rousseau, a razão é uma faculdade que só se desenvolve a partir de outras. O desenvolvimento da faculdade da razão é complexo e tardio. As sensações físicas e as paixões do espírito são faculdades que precedem à razão. Perceber e sentir são estados que o homem tem em comum com os animais. Querer e não querer, desejar e temer são as primeiras operações da alma humana. O entendimento humano devia em muito às paixões, pois era por elas que a razão se aperfeiçoa. Ele dizia: “só procuramos conhecer porque desejamos usufruir e é impossível conceber por que aquele, que não tem desejos ou temores, dar-se-ia a pena raciocinar” (ROUSSEAU, 1974, p. 250).

Na concepção de educação de Rousseau, o preceptor de crianças pequenas não deveria empregar a força nem o raciocínio. Assim, o preceptor ao exercer a autoridade deveria conduzir sem violência e persuadir sem convencer. A principal tarefa do preceptor, nos primeiros anos de vida da criança, era possibilitar que elas desenvolvessem a curiosidade e a experimentação sensorial. Sobre isto ele dizia:

As primeiras faculdades que se formam e se aperfeiçoam em nós são os sentidos. São, portanto, as primeiras faculdades que seria preciso cultivar; são as únicas que são esquecidas, ou as mais desdenhadas (...). Portanto, não exerciteis apenas as forças, exercitai todos os sentidos que as dirigem; tirai de cada um deles todo o partido possível, e depois verificai a impressão de um pelo outro. Medi, contai, pesai, comparai. Não uses de força senão depois de ter calculado a resistência; agi sempre de tal sorte que o cálculo do efeito preceda o emprego dos meios. Fazei com que a criança tenha interesse em nunca fazer esforços insuficientes ou supérfluos (ROUSSEAU, 2004, p. 160).

Para cultivar a inteligência era preciso antes cultivar as forças que o aluno deveria governar. O exercício do corpo deveria ser contínuo, para que este ficasse robusto e sadio. Trabalhar, agir, correr e gritar são fontes de vigor para o homem. Com o vigor viria também a razão. O exercício do corpo, de forma alguma, prejudica as operações do espírito. As forças do corpo e da razão devem ser combinadas para que uma não sobreponha a outra. Na educação proposta por Rousseau, o fundamental era possibilitar às crianças mais liberdade e menos domínio. As crianças deviam fazer mais por si e exigir menos dos outros, “acostumando-se cedo a limitar os seus desejos às suas forças, pouco sentirão a privação do que não tiver em seu poder” (ROUSSEAU, 2004, p. 58). Desta forma, a liberdade vivenciada pela criança pouco a pouco se transformaria em auto-suficiência.

A experimentação sensorial, o fortalecimento da vontade e a proteção contra os vícios dos costumes civis eram as prioridades na educação da primeira infância. “Esse é o meio de um dia obter o que acreditamos ser incompatível e o que quase todos os grandes homens reuniram a força do corpo e a força da alma, a razão de um sábio e o vigor de um atleta. (...) Jamais conseguireis criar homens sensatos se antes não criardes moleques” (ROUSSEAU, 2004, p. 139).

2.2 Concepção de Infância
Existe uma coerência intrínseca entre a concepção de homem, proposta no “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, e a de infância, desenvolvida por Rousseau na obra Emílio ou Da Educação. As idéias da bondade e da liberdade original inscrita no homem natural deram base ao seu entendimento sobre a infância. Por tal, novamente Rousseau se opôs a Hobbes ao propor suas teses educativas, dizendo: “respeitai a infância e não vos apresseis em julgá-la, quer para bem, quer para o mal” (ROUSSEAU, 2004, p. 119). Na sua visão, Hobbes dizia algo absolutamente contraditório ao chamar o mau de criança robusta. A criança não deveria receber um julgamento a priori. Para refutar os argumentos de Hobbes, ele dizia:

Toda maldade vem da fraqueza; a criança só é má porque é fraca. Tornai-a forte e ela se tornará boa. Aquele que tudo pudesse jamais faria o mal. De todos os atributos da divindade todo-poderosa, a bondade é aquele sem o qual menos podemos concebê-la. Todos os povos que reconhecem dois princípios sempre consideram o mau como inferior ao bom, sem o que teriam feito uma suposição absurda. (...) Só a razão nos ensina a conhecer o bem e o mal. A consciência que nos faz amar a um e a odiar ao outro, embora independente da razão, não pode, pois, desenvolver-se sem ela. Antes da idade da razão, fazemos o bem e o mal sem sabê-lo, e não há moralidade em nossas ações, embora às vezes ela exista no sentimento das ações de outrem que se relacionam conosco (ROUSSEAU, 2004, p. 56).

Reaparece, na sua visão de infância, o conceito de amoralismo integral. A bondade e maldade são valores que a criança pequena não consegue apreender. Os atos infantis não são guiados pela razão. Assim, quando uma criança destrói coisas, derruba objetos, fere ou provoca dor em animais ou a pessoas, ela não o faz por entender ser esses atos bons ou maus. De acordo com Rousseau, os filósofos Hobbes e Locke se equivocavam ao tentar explicar tais atos pelos vícios naturais, como orgulho, espírito de dominação, amor próprio e maldade do homem.

Rousseau compreendia que tais atos tinham origem nas necessidades implícitas à fase de desenvolvimento que a criança vivia e não na maldade original da natureza humana. Sua explicação se sustentava na noção de desenvolvimento infantil. A criança pequena, por sua característica fraqueza física, possuiu a necessidade de realizar atos de força. A criança se movimenta bruscamente. Tudo é intenso e dinâmico, pois ela precisa experimentar novas sensações e provar para si mesma seu próprio poder. Na pessoa idosa ocorre o contrário, as ações desejadas são as que trazem tranquilidade, a menor mudança perturba e inquieta. Assim:

A atividade enfraquecida concentra-se no coração do velho; no da criança, ela é superabundante e se lança para fora; a criança sente-se, por assim dizer, com vida suficiente para animar tudo o que a cerca. Pouco importa que faça e desfaça; basta que mude o estado das coisas, e toda mudança é ação. Pois, se parece ter uma tendência maior para destruir, não é por maldade, mas porque a ação que forma é sempre lenta, e a que destrói, sendo mais rápida, convém mais à sua vivacidade (ROUSSEAU, 2004, p. 57).

Se os atos destrutivos da criança tivessem origem nos vícios naturais, por que no velho, que é herdeiro da mesma natureza primitiva, eles não se mantêm? Essa pergunta, Rousseau respondeu com outra interrogativa: “onde encontraremos essa diversidade de causa a não ser na condição física dos indivíduos?” E continuava seu raciocínio dizendo: “o princípio ativo, comum a ambos, desenvolve-se num e extingue-se no outro; um se forma e o outro se destrói; um tende a vida, o outro a morte” (ROUSSEAU, 2004, p. 57).

A diferenciação estabelecida entre as necessidades e os comportamentos das crianças e dos velhos, demonstrava como Rousseau concebia o desenvolvimento humano. Para ele, o homem não era um ser pronto e acabado. Em cada idade o homem se expressa, adquiri habilidades e apreende o mundo de forma diferente. A fim de sustentar esta tese, Rousseau, em um esforço extraordinário de argumentação, descreveu minuciosamente as fases de desenvolvimento por qual passava a criança. Esse esforço explicativo compareceu na sua descrição do processo de desenvolvimento dos sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato), da aquisição da linguagem e da evolução do raciocínio.

Nas teses apresentadas na obra Emílio, Rousseau inaugura, no pensamento de sua época, a noção de desenvolvimento infantil. Do ponto de vista da autoria desde texto, essa noção foi uma das maiores contribuições de Rousseau. Em sua concepção de infância, não cabia mais a visão de que a criança é um adulto em miniatura. A criança é um ser em fase especial de desenvolvimento. Portanto, os parâmetros a serem usados na compreensão da criança não poderiam ser os mesmo do homem adulto. O discernimento da criança e do adulto possui origens e funcionamentos distintos.

Se em cada fase a criança assumia um entendimento e uma expressão diferente, cabia, então ao preceptor, conduzir o processo educativo de acordo com as necessidades e possibilidades de cada uma dessas fases. Ao longo dos capítulos do livro Emílio ou Da Educação, Rousseau deixava nítidas recomendações aos futuros preceptores para cada etapa de vida da criança. As recomendações feitas sobre temas como: a necessidade de experimentação sensorial, o desenvolvimento do raciocínio, a noção de tempo, e os hábitos e costumes civis serão exemplificadas a seguir. Sobre a aprendizagem sensorial ele sugeria:

A criança quer tocar em tudo, pegar em tudo: não vos oponha a esta inquietação; ela lhe sugere um aprendizado muito necessário. É assim que ela aprende a sentir o calor, o frio, a dureza, a moleza, o peso, a leveza dos corpos, a julgar sua grandeza, sua figura e todas as qualidades sensíveis, olhando, apalpando, escutando e principalmente comparando a visão com o tato, estimulando com os olhos a sensação que produziriam em seus dedos (ROUSSEAU, 2004, p. 51-52).

Nos primeiros anos de vida todo o saber da criança provém das sensações, nada passou ainda pelo entendimento. Rousseau esclarecia, no entanto, a qual entendimento estava se referindo. A criança não estava isenta de nenhuma espécie de raciocínio. Mas, sim, seu raciocínio era de natureza imediata e estava ligado a eventos concretos. Ele entende que as crianças “raciocinam muito bem em tudo o que conhecem e que relacione com o seu interesse presente e sensível” (ROUSSEAU, 2004, p. 121).

Como a criança pequena só atinge o nível de raciocínio sensível e imediato, cabia ao preceptor uma atenção especial na forma como se comunicava com ela. Nos primeiros anos de vida da criança, a educação não deveria privilegiar as palavras, mas sim os atos. Assim, outro alerta foi dirigido aos jovens mestres: “peço-vos que penseis nesse exemplo e vos lembreis de que em todas as coisas vossas lições devem consistir mais em atos do que em palavras, pois as crianças facilmente se esquecem do que disseram e do que lhes dissemos, mas não do que fizeram e do que fizemos” (ROUSSEAU, 2004, p. 107).

Sobre a importância do tempo na educação das crianças, Rousseau dizia: os “defeitos de corpo e de espírito vêm quase todos da mesma causa: queremos ver as crianças homens antes do tempo” (ROUSSEAU, 2004, p. 150). Para evitar esses “defeitos”, ele deixou um aviso aos preceptores: “a instrução das crianças é uma profissão em que é preciso saber perder tempo para poder ganhá-lo” (ROUSSEAU, 2004, p. 175, 2004). Ao educar as crianças, o preceptor precisava ter ciência de que em cada fase de vida certa aprendizagem era adquirida. Antecipar determinadas aprendizagens, em função de uma demanda social, era para Rousseau um grande equívoco. Este posicionamento pode ser evidenciado quando ele falava sobre o sono da razão:

Deixai as exceções se revelarem, se provarem, se confirmarem muito tempo antes de adotar para elas métodos particulares. Deixai a natureza agir bastante tempo antes de resolver agir em seu lugar, temendo contrariar suas operações. Dizei que conheceis o valor do tempo e não quereis perdê-lo. Não vedes que perdeis muito mais empregando-o mal do que fazendo nada, e que uma criança mal instruída está mais distante da sabedoria do que aquela que não foi absolutamente instruída.(...) Que diríeis de um homem que, para aproveitar toda a vida, não quisesse dormir nunca? Diríeis: este homem é louco; não desfruta o tempo, mas perde-o; para fugir do sono, corre para a morte. Considerai, pois que nesse caso ocorre a mesma coisa, e a infância é o sono da razão (ROUSSEAU, 2004, p. 119).

Por fim, Rousseau solicitava que os preceptores não cultivassem o estabelecimento de hábitos na educação das crianças. Sua meta ao fazer tal recomendação, era não permitir que as crianças se acomodassem fisicamente a rotina dos cuidados diários. Ele dizia:

O único hábito que devemos deixar que a criança adquira é o de não contrair nenhum. Que não a carreguem mais sobre um braço do que sobre o outro, que não a acostumem a mostrar mais uma mão do que a outra, a se servir dela com maior freqüência, a querer comer, dormir e agir às mesmas horas, a não poder ficar sozinha nem de dia nem de noite. Preparai à distância o reinado de sua liberdade e o uso de suas forças, deixando em seu corpo o hábito natural, colocando-a em condições de sempre ser senhora de si mesmo (ROUSSEAU, 2004, p. 49).

A rotina e o costume, ou seja, os hábitos encobriam as reais necessidades naturais da criança. Os hábitos, particularmente os da Sociedade Civil, geravam acomodação e subserviência nas crianças. Ao negar a formação de hábitos, os preceptores estavam preparando a criança para governo de sua liberdade e o uso de suas forças. Para que o corpo da criança se fortaleza era preciso deixá-lo ser conduzido apenas pelo hábito natural. Comparece aqui, novamente a tese defendida por Rousseau de que o homem só está sujeito à soberania da natureza e não dos costumes e convenções civis.

2.3 Uma proposta de educação não violenta para a infância
Para Rousseau, a vida da criança não valia menos do que a vida de um adulto. A fase inicial, os primeiros anos de vida da criança, não deveria ser desprezada em função dos projetos e expectativas da vida adulta. Como o tempo de vida de cada indivíduo era sempre incerto, cada instante deveria ser muito valorizado. A mortalidade infantil era devastadora na época em que viveu Rousseau. Das crianças que nasciam vivas, no máximo, a metade chegava à adolescência. Os maiores riscos estavam no começo da vida. Assim, quanto menos se vivesse menos deveriam esperar viver. Ciente disso, fez severas críticas à educação oferecida aos alunos de seu tempo:

Que devemos pensar, então, dessa educação bárbara que sacrifica o presente por um futuro incerto, que prende uma criança a correntes de todo o tipo e começa por torná-la miserável, para lhe proporcionar mais tarde não sei que pretensa felicidade de que provavelmente não gozará jamais? Mesmo que eu considere razoável essa educação por seu fim, como encarar sem indignação essas pobres infelizes submetidas a um jugo insuportável e condenadas a trabalhos contínuos como os galeotes, sem ter certeza de que tantos trabalhos algum dia lhes serão úteis! A idade da alegria passa-se e meio a prantos, a castigos, a ameaças, à escravidão. Atormenta-se a infeliz para seu próprio bem, e não se vê a morte que a chama e vai apanhá-la no meio dessa triste condição. Quem sabe quantas crianças morrem vítimas da extravagante sabedoria de um pai ou de um professor? Felizes por escaparem à sua crueldade, a única vantagem que tiram dos males que lhes fizeram sofrer é morrer sem ter saudades da vida, de só conheceram os tormentos (ROUSSEAU, 2004, p. 72).

Ao tecer essa contundente crítica à educação que promovia o mal em nome de um bem futuro, Rousseau fez uma das mais belas defesa da infância. E convocava os homens a cumprirem o seu primeiro dever: serem verdadeiramente humanos. E continuava o seu apelo dizendo:

(...) sede humanos para todas as condições, para todas as idades, para tudo o que não é alheio ao homem. Por vós, que sabedoria há fora da humanidade? Amai a infância; favorecei suas brincadeiras, seus prazeres, seu amável instinto. Quem de vós não teve saudade dessa época em que o riso está sempre nos lábios, e a alma está sempre em paz? Por que quereis retirar desses pequenos inocentes o gozo de um tempo tão curto que lhes foge, e de um bem tão precioso, de que não poderiam abusar? Por que quereis encher de amargura e de dores esses primeiros anos tão velozes, que não mais voltarão para eles, assim como não voltarão para vós? Não fabriqueis remorsos para vós mesmos retirando os poucos instantes que a natureza lhes dá. Assim que eles puderem sentir o prazer de existir, fazei com que o gozem; fazei com que, a qualquer hora que Deus chamar, não morram sem ter saboreado vida (ROUSSEAU, 2004, p. 72-73).

A sua crítica a essa educação bárbara prosseguiu e em nenhum momento ele se intimidou ao que Rousseau chamou de falsa sabedoria. A falsa sabedoria buscava tirar os homens para fora de si, considerando sempre que o presente não é nada. Se só o futuro interessava, então o homem nunca viveria o momento atual, pois estaria se preparando sempre para o próximo. O homem, assim, seria levado a estar onde nunca poderia estar verdadeiramente. Com essa argumentação, Rousseau em pleno século XVIII, iniciava a desconstrução da idéia de que a criança é um ser do amanhã, um cidadão do futuro.

A educação não tinha, para Rousseau, como objetivo corrigir as más inclinações do homem. O dito popular “É de pequeno que se torce o pepino”, tão em voga nos tempos atuais, jamais teria valor na sua educação proposta. Ele contestava a idéia de que:

(...) é na infância, quando as dores são menos sensíveis, que devemos multiplicá-las, para poupá-las na idade da razão. Mas quem vos diz que todo esse arranjo está à vossa disposição e todas essas belas instruções com que torturais o débil espírito de uma criança não lhe serão um dia mais nocivas do que úteis? Quem vos garante que poupais alguma coisa com os sofrimentos que lhes prodigais? Por que lhe dais mais males do que sua condição comporta, sem terdes certeza de que esses males presentes diminuirão os futuros? E como me provareis que essas más inclinações de que pretendeis curá-las não provêm de vossos cuidados mal compreendidos, muito mais do que da natureza? Infeliz previdência, que torna um ser atualmente miserável, na esperança bem ou mal fundada de torná-lo feliz um dia! Pois se esses vulgares raciocinadores confundem a licença com liberdade, e a criança que tornamos feliz com a criança mimada, ensinemo-los a distingui-las (ROUSSEAU, 2004, p. 73).

Para Rousseau, a humanidade tem seu lugar na ordem das coisas. E a infância tem o seu na ordem da vida humana. Assim, “é preciso considerar o homem no homem e a criança na criança (ROUSSEAU, 2004, p. 74)”. Para atingir o bem-estar dos indivíduos era necessário que a criança e o homem estivessem no seu devido lugar, devendo-se assim fixar e ordenar as paixões humanas conforme a constituição de cada um.

Ainda conforme Rousseau, a criança não era um ser desprezível. Ele dedica muito de seu esforço intelectual a entendê-la. A primeira educação é considerada a mais importante. Por diversas vezes, ele expressava em seus escritos espanto e indignação ao presenciar adultos utilizando-se de métodos violentos na educação das crianças. Em uma passagem exemplar ele questionava a justiça de tais métodos:

Jamais esquecerei ter visto um desses incômodos chorões apanhar da ama-de-leite. Calou-se de imediato; achei que ficara com medo. Dizia para mim mesmo: será uma alma servil de quem só se conseguirão as coisas através do rigor. Estava enganado: o infeliz sufocado de cólera, tinha perdido a respiração, vi-o tornar-se roxo. Logo em seguida vieram os gritos agudos. Todos os sinais do ressentimento, do furor, do desespero dessa idade estavam no tom em que chorava. Temi que morresse naquela agitação. Se eu tivesse dúvida de que o sentimento do justo e do injusto é inato no coração do homem, só esse exemplo já me teria convencido. Tenho certeza de que, se um tição ardente tivesse caído por acaso na mão daquela criança, teria sido para ela menos doloroso do que aquele golpe leve, mas desferido com a intenção manifesta de atingi-la (ROUSSEAU, 2004, p. 54).

A educação proposta por Rousseau buscava, por todos os meios, destruir o que a sociedade civil construiu. O princípio fundamental dessa educação era romper com o modelo de relação estabelecida entre os homens, que tinha como base a dominação e, por conseguinte, a servidão. No entendimento de Rousseau. “o capricho das crianças nunca é obra da natureza, mas sim de uma má disciplina, que faz com que obedeçam ou mandem, já disse cem vezes que não devem fazer nem uma coisa nem outra” (ROUSSEAU, 2004, p. 142).

Rousseau discordava tanto dos adultos que impunham às crianças suas vontades à força, como dos que faziam todas as vontades da criança, mimando-a em demasia. Em sua opinião, as duas atitudes resultavam em prejuízo, pois:

Ao nascer, uma criança grita; sua primeira infância passa chorando. Ora a sacodem e a mimam para acalmá-la, ora a ameaçam e lhe batem para que fique quieta. Ou lhe fazemos o que lhe agrada, ou exigimos dela o que nos agrada; ou nos submetemos às suas fantasias, ou a submetemos às nossas: não há meio termo, ela deve dar ordens ou recebê-las. Assim, suas primeiras idéias são as de domínio e de servidão. Antes de saber falar ela dá ordens, antes de poder agir ela obedece e, às vezes, castigam-na antes que possa conhecer seus erros, ou melhor, cometê-los. É assim que cedo vertemos em seu jovem coração as paixões que depois imputamos à natureza, e após nos termos esforçado para torná-la má, queixamo-nos de vê-la assim (ROUSSEAU, 2004, p. 26).

Os educadores, no entendimento de Rousseau, jamais deveriam infligir às crianças o castigo como castigo. As punições deveriam chegar até as crianças como uma conseqüência natural de sua má ação. A sua rejeição ao castigo, como método educacional, foi explicitada no momento em que ele refletia sobre as mentiras das crianças. Rousseau recomendava aos preceptores que ao identificar uma mentira não fizessem declarações contra a ela, nem tão pouco punisse a criança por ter mentido. O importante é que a criança sentisse todos os efeitos da mentira, como por exemplo: “não se acreditar nelas quando dizem a verdade, o de serem acusadas pelo mal que não fizeram, mesmo se defendendo, juntem-se sobre suas cabeças quando mentido. Mas expliquemos o que é mentir para as crianças” (ROUSSEAU, 2004, p. 109).

Na passagem dos vidros quebrados, descrita no livro II do Emílio, Rousseau novamente deixou claro o princípio de seu método educativo. Mesmo em uma situação extrema, ele não se desviou dos princípios de sua educação. Assim, enfrentou hipoteticamente a teimosia e a agressividade da criança, sem se valer de métodos coercitivos. E mais, transformou este episódio numa inusitada oportunidade de aprendizagem, como o texto abaixo demonstra:

Vosso filho díscolo estraga tudo o que pega. Não vos aborreçais. Ponde fora de seu alcance o que ele puder estragar. Ele quebra os móveis que usa; não vos apresseis em lhe dar outros, deixai que sinta o prejuízo da privação. Ele quebra as janelas de seu quarto; deixei que o vento sopre sobre ele noite e dia sem vos preocupardes com o resfriado, pois é melhor que ele esteja resfriado do que louco. Nunca vos queixeis dos incômodos que ele vos causa, mas fazei com que seja o primeiro a sentir. Por fim, mandai repor os vidros, sempre sem dizer nada. Quebra-os mais uma vez? Mudai, então, de método. Dizei-lhe secamente, mas sem cólera: as janelas são minhas, foram postas ali por minha ordem, e eu quero protegê-las. Depois vós o trancareis no escuro, num lugar sem janelas. Diante desse novo procedimento, ele começa a gritar, por trovejar, ninguém o escuta. Logo ele se cansa e muda de tom. Queixa-se e geme; um doméstico aparece, o rebelde pede-lhe que o solte. Sem procurar pretexto para nada fazer, o doméstico responde: Tenho também vidros para consertar, e vai embora. Finalmente, depois que a criança tiver ficado ali por várias horas, tempo bastante para se aborrecer e para não esquecer, alguém lhe sugerirá que vos proponha um acordo por meio do qual vós lhe restituiríeis a liberdade e ela não quebraria mais vidros.(...) E depois, sem lhe pedir nem declaração, nem conformação de sua promessa, vós a beijareis com alegria e a conduzireis imediatamente até seu quarto, encarando esse acordo como sagrado e inviolável, tanto quanto se tivesse sido jurado. Que idéia pensais que a criança terá a partir desse caso, sobre a fé dos compromissos e sobre a sua utilidade (ROUSSEAU, 2004, p. 108)?

Com relação a sua proposta educativa, Rousseau deixou ainda dois alertas para os preceptores. No primeiro alerta, ele recomendava que não se devesse encorajar a rebeldia de uma criança. Ela não devia ser incitada a bater, ainda que seja por brincadeira. Pois, de acordo com sua visão: “aquele que quer bater quando jovem vai querer matar quando grande” (ROUSSEAU, 2004, p. 103). Da mesma forma que a agressão não devia ser estimulada, o preceptor não deveria agir, nem tão pouco, atribuir um valor positivo às atitudes impetuosas e coléricas que vinham dos demais adultos. Sobre essas atitudes e a impressão que causa nas crianças, ele dizia:

As paixões impetuosas produzem um grande efeito na criança que a presencia, pois elas têm sinais muito sensíveis que impressionam e a força a prestar atenção. A cólera, principalmente, é tão ruidosa em seus arroubos que é impossível não percebê-la estando por perto. (...) A criança vê um rosto excitado, olhos brilhantes, um gesto ameaçador, ouve gritos; são todos sinais de que o corpo não vai bem. Dizei-lhe isso, tranquilamente, sem mistério: este pobre homem está doente, sofre um acesso de febre (ROUSSEAU, 2004, p. 101).

A moderação sempre deveria prevalecer na conduta do preceptor. Se por algum motivo o preceptor perdesse o sangue-frio, no processo de formação do aluno, ele não deveria disfarçar o erro. Pelo contrário, com total franqueza deveria expressar o que fez perder o controle naquele momento. Agindo assim, o preceptor simultaneamente negava as dissimulações e restabelecia e afirmava o seu autocontrole. O comportamento do preceptor deveria ser um constante exemplo. O objetivo fundamental da educação de Rousseau era conduzir a criança para que ela conquistasse a liberdade, ou seja, o autogoverno de si. Diante dessa proposta, ele deixou mais um importante alerta para os futuros preceptores: “(...) nunca é demais repetir que, para ser o mestre da criança, é preciso ser mestre de si mesmo” (ROUSSEAU, 2004, p. 102).